quinta-feira, agosto 16, 2012

JULES MICHELET: ANTEVISÃO POÉTICA DAS BRUXAS


DA NATUREZA ROMÂNTICA
À NATUREZA ECOLÓGICA (*)

(*) Este texto de Afonso Cautela foi incluído por Fernando Ribeiro de Mello na obra de Jules Michelet «Sobre as Feiticeiras», Edições Afrodite, Novembro de 1974


«Por muito medo que se lhe tenha, temos de reconhecer que sem ele (Diabo) morreríamos de monotonia.»
«Deus não pode estar em tudo e muito menos sempre a trabalhar.»
«Os mais felizes ou menos desditosos são os que morrem. O horror é a vida em tormento.»


Ao acusar a máquina religiosa de perseguir a luz, o sol, as estrelas, a natureza, as forças instintivas, a fecundidade, a vida, o corpo — a Igreja em tudo isso via o Diabo, vendo Lúcifer na estrela da manhã — ao acusar a Igreja de destruir os deuses pagãos, de abominar a Pã, Michelet quase acertou no alvo.
Se apenas S. Francisco de Assis, dentro dos quadros canónicos, pode hoje redimir em parte essa ofensiva (cristã? judaica?) contra o corpo e as harmonias cósmicas, se nisso Michelet viu e ajuizou certo, como bom romântico que era, o conceito de Natureza que o seu romantismo inspira é que é necessariamente, por definição, frustre e releva de um rousseauísmo que tem hoje tantos caluniadores (inimigos) como adeptos (equivocados).
Modernamente os naturistas aperceberam-se do mesmo engano: a boa e sábia Natureza, mãe acolhedora, matriz protectora, assim como o respeito pelas leis naturais ou a protecção e conservação da Natureza, são o programa de alguns movimentos que o observador incauto confunde com perspectiva e movimento ecológico.
Está longe, porém, a «démarche» ecológica de ser uma religião da Natureza ou um neopanteísmo, embora contra os quais, aliás, nada tenha, mas com os quais, por outro lado, não se confunde, mantendo, quando muito, simpatia e afinidades, relações de boa vizinhança, de pacífica coexistência.
O dogma ecológico não parte de uma visão metafísica, de um embevecimento extático e estético perante a Natureza mas de uma posição contracultural; a «démarche» ecológica cifra-se em termos do padrão cultural (antropocultural para os mais exigentes) capaz de um entendimento e convívio entre macro e microcosmos.
A Natureza tem também, enquanto entidade mítica, enquanto ontos metafísico, desordens, tempestades, agressões, prepotências e violências.
Eis um facto que os naturistas nunca reconhecem mas que o dogma ecológico não hesita em reconhecer, pois não faz da Natureza sustentáculo da sua fé, da sua religião.
Para a ética ecológica, a história, a função humana é — no meio de uma Natureza nem sempre amiga mas tantas vezes hostil, insalubre, ameaçadora e cheia de mosquitos... — ter criado o habitat, o ambiente, a rede que o protege, enfim, a ordem verdadeiramente humana.
A história ecológica (tragicómica) do homem começa quando ele constrói a primeira caverna, o primeiro abrigo, o primeiro abafo: não totalmente contra a Natureza, não totalmente exposto à Natureza, mas em equilíbrio dialéctico com ela.
Civilizada será a sociedade que encontra ou reencontra esse equilíbrio, espontâneo e natural, aliás, em algumas.
Entre o massacre (judaico? cristão?) da Natureza (que desenfreadamente continua a processar-se com os amens de toda a canalha, tecno-bioburocrática) e a «religião da Natureza» de franciscanos, rousseauístas, escutistas, conservacionistas, etc., a dialéctica ecológica é diferente. Apenas.
O que, evidentemente, não retira mérito ao romântico Michelet, indignado acusador de torcionários.

DO SAPO AOS PLACEBOS, DA FITOTERAPIA À QUIMIOTERAPIA
Identificam-se normalmente com a fitoterapia (medicina pelas plantas) os equívocos e preconceitos com que é costume olhar-se e odiar-se a medicina heterodoxa, as «artes de curar», quaisquer que elas sejam.
A fitoterapia ou homeopatia é normalmente aquilo em que se pensa quando se fala de medicinas naturais ou de naturopatia, sempre que se apontam alternativas para a tirania alopática.
Ervas lembram Natureza e «ervinhas» é o diminutivo que pejora o conceito, a imagem delas dimanada... Sempre e aqui também, a terminologia trai a ideologia. Neste caso, trai a repugnante ideologia alopática.
Ervas lembram quadro rústico (barbárie, obscurantismo, ruralidade, etc.) e o mito «Natureza» tanto serve aos adversários como aos adeptos.
Evidente na prosa romântica de Michelet, que pinta a bruxa num matagal cerrado de belezas e perfumes naturais, não admira que a Natureza e as beberagens de ervas aromáticas ou venenosas tivessem ficado indissoluvelmente ligadas a uma imagem depreciativa, degradante e deformada da «cura pela Natureza».
Diga-se de passagem que naturistas e neonaturistas também não ajudam muito a creditar as ideias que defendem.
Chás, infusões, doses homeopáticas tiveram uma tal influência e provêm de raízes tão profundas, que a Medicina oficial está, ainda hoje, baseada nesses princípios, de facto empíricos e de facto metafísicos que regem a homeopatia ou sintomatologia.
O princípio da semelhança (similia similabus curantur) e o princípio da diluição, nos quais assenta a Farmacopeia de todos os tempos, não só se degradaram ao destacar-se de uma metafísica analógica unicamente em função da qual tinham sentido, como, depois de corrompidos, alimentaram e continuam alimentando o negócio de frasquinhos a que a arte da Medicina ficou mais ou menos reduzida.
Diz-se, não raro, que a quimioterapia moderna destronou o empirismo metafísico desses dois princípios que inspiraram a prática medieval da homeopatia; no entanto, é evidente, e alguns cronistas «científicos» não deixam de o afirmar, que soros, vacinas e extractos de órgãos se inspiram nos mesmíssimos princípios empíricos, metafísicos.
Se a homeopatia se limitou e limita, como é facto, a estudar a sintomatologia das doenças e a actuar sobre ela — procurando combater cada um dos sintomas, com medicamentos, sempre os mesmos, cuja eficácia fora empiricamente confirmada —, a única diferença para a farmacopeia industrial é que esta inventou o «específico» (para intensificar o negócio, multiplicando os rótulos) e essoutra entidade metafísica chamada «princípio activo», abstracção nascida nas delirantes cabecinhas dos sábios que dizem «fabricá-lo» depois nos laboratórios.
Quero eu dizer na minha: a Sintomatologia, seja ela medieval ou moderna e ultramoderna, é sempre reaccionária, empírica, metafísica e anticientífica. Charlatanismo ou obscurantismo tanto é o das práticas mágicas e satânicas do veneno homeopático como o das práticas e venenos farmacêuticos sinteticamente fabricados nos laboratórios.
Sapos e sangue de frango puderam actuar por sugestão, durante séculos, como por sugestão actuam ainda hoje os placebos.
Finalmente, a gama de efeitos obtidos pela solanácea — ora para acalmar, ora para excitar — não difere fundamentalmente da gama conseguida hoje pela maioria dos medicamentos ditos modernos (a não ser os da acção violenta, mas esses entram noutro capítulo, o da Criminologia): o princípio da fitoterapia — acalmar ou excitar — estará de facto muito longe da quimioterapia corrente nos tempos de hoje, que quando não mata engorda?

A HISTÓRIA OCIDENTAL, ESPECTÁCULO SADO-MASOQUISTA
Nesse grande «sabbat» de séculos em que a prática sado-masoquista foi premonitória de Sade, seu executor literário (antecedendo o espírito a letra), a crueldade era espectáculo e Artaud não errava ao programar um teatro de crueldade, nem o manifesto pânico de Arrabal ficaria vinculado a fatalidade diferente desta.
Mesmo na ironia dialéctica de Buñuel, a História é um espectáculo sado-masoquista e não sei se alguns terão chamado a isso obscurantismo. Mas poderá ter outro nome a nova e refinada Idade Medieval em que vivemos? Quem terá dúvidas sobre o canibalismo obscurantista do Mundo Moderno, se é do domínio público a tortura, o massacre, o «banho de sangue», ora aqui ora acolá?
Inacreditável é que os principais teólogos desse neo-obscurantismo — os tecno-bio-burocratas — acusem de Charlatanismo e incitem à fogueira — desencadeando nova caça às bruxas — as inocentes práticas de curandeirismo que ora nesta aldeia, ora naquele bairro pobre de cidade rica, a Imprensa sensacionalisticamente vai descobrir e explorar para pasto autofágico dos leitores sado-masoquistas.
Que se não cura com rezas, sapos e sangue de bode sabem-no bem os Messegué da fitoterapia homeopática, os Collucci da trofoterapia, os Jurasunas da iridologia. Mas é com rezas, sapos e sangue de bode que pretendem curar os quimioterapeutas da sintomatologia moderna. O Charlatanismo obscurantista está na sintomatologia, não está nos aparelhos ou animáculos ou ervinhas que servem essa Sintomatologia.
Curandeiro é o que cura. E o que cura é o que vai à Causalidade da maleita, não o que abafa ou dilui ou distrai sintomas. O curandeiro de hoje, é o verdadeiro herdeiro da tradição causal e científica da prática médica que, vinda do taoísmo chinês, tem na Europa apenas um representante idóneo: Hipócrates. Quem herdou a Sintomatologia de Galeno (e das bruxas que nas montanhas bascas ou nas névoas bretãs participavam de conciliábulos) foi a Medicina Moderna, a Moderna Alopatia, a Sintomatologia vigente, de que a transplantologia em especial e a cirurgia em geral é o último e sangrento resultado.
O exorcista de ontem, tal como o clínico de hoje, colaboram no negócio da bruxa e precisam, um e outro, do Diabo.
O Diabo hoje chama-se Micróbio, e a teologia médica mobiliza-se para combater o «diabólico» micróbio, sabendo que necessita dele como o inquisidor precisava das chamas infernais e da bruxa delas possessa para atear os madeiros e não perder, assim, o emprego.
Pelo que nos conta Michelet, a bruxa ao declarar-se «possessa» no tribunal, participava do ritual sado-masoquista que a todos interessava, necessitando ardentemente, para sua satisfação sexual, que o carrasco a pusesse a ferro e fogo.
Vá lá a gente (que em matéria sexual tão modestos somos...) perceber a que graus de aberração foi possível o cristianismo levar o animal humano. Sem o cristianismo, o menos que podemos dizer é que não teriam existido Sade, nem Freud, nem Hitler, nem Pinochet.

A INDUSTRIA MÉDICA NÃO ADMITE CONCORRENTES
É frequente reduzir-se a heterodoxia médica à fitoterapia e um certo horror às «bruxarias com plantas» se revela tradicionalmente nos comentários com que a ortodoxia, pela pena oficial da «ciência esclarecida» e dos preclaros cientistas vai mimoseando as forças rivais.
Esse horror da ortodoxia médica às heterodoxias ou heresias que, através dos séculos, a contestam e repõem em causa, esse ódio do monopólio (dito) científico e suas artimanhas comerciais às Artes de Curar que deixaram de estar sob o controle do seu poder e no dos curas, é uma constante das apreciações feitas pelo obscurantismo à fitoterapia.
Excepto quando recuperado pela indústria farmacêutica (a que mais recentemente se aliou a indústria de alucinogéneos, estupefacientes e destilarias alcoólicas) o poder mágico das solanáceas convém que seja diminuído, desvirtuado, caluniado.
A ortodoxia científica em geral e a indústria médica em especial vigiam os poderes concorrentes que permitiriam, porventura, ao homem emancipar-se — curar-se — e definitivamente livrar-se da sua tirania,

ÓDIO AO CORPO PORCARIA NA CERTA
Para Michelet, o século XIII teria sido o século da lepra europeia.
Causas apontadas: o uso de bebidas fermentadas e os estimulantes para aguçar o instinto genésico, recalcado pelos monásticos e freiráticos costumes.
Sempre é uma explicação mais científica do que a fornecida pela Igreja, para a qual os males epidémicos eram devidos aos pecados dos fiéis infiéis.
E não seria também devido à porcaria que reinava como norma nos conventos e arredores? À porcaria que o cristianismo instituiu como obrigação decorrente do ódio ao corpo que lhe era inerente?

DE PARACELSO A BARNARD
Pueril, romântico, o regozijo de Michelet não nos espanta.
Diz ele: «A Igreja teve que sofrer e tolerar estes crimes e chegou a confessar que há venenos bons. Forçada a isso, permitiu as dissecações públicas e em 1306 o italiano Mondino abriu o cadáver de uma mulher e outro em 1315. Revelação sagrada, descoberta de um mundo maior que o de Cristóvão Colombo.»
Arroubo romântico, sem dúvida.
Dissecar cadáveres foi apenas um primeiro passo. E não nos iludamos a supor (como faz Michelet) que a Igreja, perante esse novo festim carnívoro, o consentiu contrariada. Foi babada de gozo, que a teologia passou a dissecar não já cadáveres mas apetitosos corpinhos vivos.
Daí aos crematórios nazis era apenas questão de tempo e refinamento. Foram apenas mais alguns passos de inquisidor. E dos crematórios às transplantologias, só questão de haver um Dr. Barnard com suficiente descaramento para comercializar a prática.

PECADORES DE ONTEM, VERDUGOS DE HOJE
A deformação romântica de Michelet leva-o a tomar o partido do Diabo, como se neste futebol medievo já fosse obrigatório ter filiação num dos dois clubes: no das ferventes caldeiras mefistofélicas, propícias a destilarias e fermentações alcoólicas, a visões e a cosmovisões alucinogénicas, ou no da insípida monotonia de conventos e mosteiros, de frades e freiras, de santos e penitências.
Esquece Michelet de pôr em causa o próprio futebol, independentemente das equipas que jogam... o que explica muitas ingenuidades e necedades da sua apologia a Satã.
É que, para contrariar o tedium vitae que uma igreja escrofulosa aspergia sobre os corações, cai Michelet na tentação de considerar os estudos de Anatomia, a Farmácia e a Cirurgia como aquisições de grande futuro. E Paracelso um excelso doutor em Medicina.
A verdade é que Satanás venceu assimilando o vencido e, hoje, os próprios teólogos adoptam a anatomia, a farmácia, a cirurgia e outras violências como os melhores elementos da sua tortura a domicílio e das suas salas. Os verdugos de hoje aprenderam todas as virtudes do pecador de ontem.
Sempre se confirma — segundo últimas notícias da Reuter — que Deus copiou e roubou o espólio de Satanás, quando percebeu quão chorudo negócio de ali vinha.
Por muito intenso que fosse o cheiro da beladona e enjoativo o do incenso que se evolava das sacristias, era com certeza o de carne assada que sobrelevava nestes séculos narrados por Michelet.
Frango no churrasco de uma época que não envergonha o congénito carnivorismo do homem europeu — como boa época cristã que se preza —, a bruxa regalava as narinas dos inquisidores que, dizendo-se castos, não renunciavam aos prazeres da carne, mormente se no espeto.
Tão intenso cheiro a churrasqueira assinala também a constante canibalesca de uma «civilização» dita cristã mas que se lambia, do pequeno-almoço à ceia, com os glóbulos vermelhos do vizinho, do circunvizinho. E, quando Deus queria, com os excrementos.
Desconhecida ainda dos esculápios actuais, os mais lídimos herdeiros da teologia tomista-medieval, eis que a Aromoterapia teria desempenhado nesses séculos de empirismo descritos pelo sensual Michelet uma função cuja importância terapêutica apenas se pode hoje adivinhar.
Aliás, a história não será toda para adivinhar? E em matéria de odores, que podemos saber nós dos bosques, dos castelos, das cabanas?
O historiador, principalmente se possui o talento pictórico-visual de Michelet, dá-me sempre uma impressão de nauseante aleatório. Convence-se ele, pobre de espírito, de que os factos aconteceram tal e qual os descreve.
Só Jorge Luís Borges, hoje cego mas nem por isso menos vidente, teria tido a coragem de programar a historiografia como constante imaginação adivinhatória e divinatória.

SEM O DIABO, O QUE SERIA DE DEUS?
Para Michelet, a bruxa seria a «sacerdotiza da Natureza», que faria, portanto, concorrência aos sacerdotes da Igreja Católica, prelados e doutores.
O cura é também nome dos que oficiavam a missa católica.
Jogo, rivalidade, desafio, concorrência de poderes: a Igreja (intolerante de profissão) não tolera a bruxa que, «sacerdotiza da Natureza», oficia no campo da confissão e, com as ervas, quase no da hóstia.
Por seu turno, o sacerdote, «cura» chamado e considerado pelos chaguentos pelagrosos, ou endiabrados epilépticos, encontrava diminuída a freguesia do confessionário e à bruxa atribuía o baixo rendimento comercial da firma.
É aliciante interpretar o fenómeno «satânico» por esta luta de poderes, em que se digladiam curas e curandeiros, sacerdotes e sacerdotizas da Natureza. Em que mutuamente se arrancavam os cabelos.
No fundo, a fome de Poder é que é a causa rerum. Aspira-se ao Poder (temporal) quando se perdeu a religião ou religação cósmica, quando, vazio e alienado, se está predisposto às epidemias da alma tanto quanto às crostas da derme.
A doença grassa quando, à primária falta de higiene, de água e sabão, se junta a alma meio apodrecida por religiões maniqueístas como são as que dominam a Europa pré e pós medieval. ,
Dividido o Mundo, aberta a cisão entre mythos e logos, dilacerado o homem dionisíaco, surgiria a dicotomia, surgiria Deus e o Diabo em competição.
Para mútuo bode expiatório, o Diabo precisava de Deus e Deus do Diabo.
Sem o inquisidor, o fradinho ramelento que a reduzia a torresmos, a bruxa não teria sido a heroína em que Michelet a transforma e o padre-cura, sem a «sacerdotiza da Natureza», não encontraria a besta negra na qual encarnar os medievos Reichtag. Amam-se no ódio. Entredevoram-se no comum carnivorismo.
Sem Deus, o Diabo não teria passado de um tigre de papel...
Sem o Diabo, Deus não teria ganho para o petróleo.
É quase escusado lembrar que com este jogo maniqueísta — venha ele de Zaratustra ou de Baal, de judeus ou de cristãos —, não tiveram nada a ver as éticas de inspiração taoísta e dialéctica, a descobrir hoje pelos que, apercebendo-se da burla chamada tradição ocidental, da burla chamada indústria, tecnologia, ou economia, estão agora a reciclar-se no princípio único — o que religa e, por isso, dispensa religiões. Dispensa mesmo as práticas mágicas seus sucedâneos...

DO CANIBALISMO MEDIEVAL AO CANIBALISMO ULTRAMODERNO
Deus e o Diabo é dicotomia que, durante a longa Idade Média Europeia, vem potencializar todas as dicotomias de uma cultura que, perdendo a herança do caos original, entrou no caos da lógica, na irracionalidade antidialéctica, no maniqueísmo do Bem e do Mal, na dilaceração entre cosmos e microcosmos.
Caos em que ainda estamos, à espera que se abram as portas do Aquário.
A bruxa, segundo a lenda de Michelet, foi o agente mais ou menos involuntário dessa ofensiva que, preparada por uma Igreja dissoluta, desligava em vez de religar, instaurava o terror sobre a religião cósmica arrancada ao homem primordial.
Culturas e civilizações que esta ofensiva de terror cuidadosamente omitiu, porque simplesmente as ignorava, ou porque intencionalmente as desejava afugentar das populações, servem de termo comparativo à civilização cristã, cujo inimigo mais próximo se cristalizou num paganismo em breve corrompido e deturpado até ao inverosímil da monstruosa caricatura, da gigantesca mistificação. Caricatura e mistificação como só os inquisidores e doutores da Santa Madre Igreja saberiam.
Deformada a imagem das civilizações humanas (cósmicas), deformado o paganismo helénico e sua decadência romana pela óptica rancorosa e rançosa da beatice cristã, a Idade Média foi então toda uma ofensiva de obscurantismo e alienação, só comparável ao obscurantismo que, em nome da ciência, da técnica e principalmente, da Indústria (da Economia) se instaurou hoje sobre todos os Países aonde a lepra europeia-ocidental chegou, via navegadores portugueses e adstrito colonialismo.
O canibalismo mais ou menos sado-masoquista acompanha as sociedades maniqueístas; é fatal que a oposição de dois princípios irredutíveis só pode conduzir ao massacre de um pelo outro, ora de um ora de outro.
O canibalismo acompanha a civilização judaico-cristã, como por definição e fatalidade tinha de ser.
Há quem prefira afirmar que o canibalismo não acompanha certas sociedades mas o homem, a espécie humana (cuja tendência autodestrutiva seria indiscutível). É o que resta saber, o que temos por hipótese de trabalho, enquanto não tivermos por confirmada a exploração das virtualidades práticas e históricas da dialéctica, até hoje virgem...
Compassivo, Michelet reconhece: «Os mais felizes ou menos desditosos são os que morrem. O horror é a vida em tormento.»

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POETAS DO QUOTIDIANO: A ANTOLOGIA POSSÍVEL


My-life em fascículos – o labirinto da efemeridade - 1965
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POESIA PORTUGUESA DO PÓS-GUERRA

VINTE ANOS DE POESIA
VINTE ANOS DE HISTÓRIA (*)

(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado, com cortes e assinado também por Serafim Ferreira, no livro «Poesia Portuguesa do Pós-Guerra», Ed. Ulisseia, Lisboa, 1965

Fazia falta um livro que acompanhasse de perto e nas horas «difíceis», aqueles que ainda acreditam na poesia, embora nem sempre, nos suplementos literários ou nos livros que lhes servem, encontrem sintonizada a sua voz na voz dos poetas.
Fazia falta um livro que tentasse reabilitar a poesia aos olhos do famoso «homem comum. Se este livro não conseguiu tal propósito, consideramo-lo falhado. Creia-se, porém, que fizemos tudo para os reconciliar: poesia moderna e homem comum.
Poemas significantes, combativos, que documentem e testemunhem, que resistam (ao tempo e aos temporais), poemas datados e relacionados dialecticamente com um tempo ou espaço determinado: com certeza que sim, foram esses poemas que mais interessaram nesta compilação. Preocupou-nos também chamar aqueles poetas que só raramente têm surgido e publicado.
Sabemos que a excessiva verticalidade de muitos os conduziu ao silêncio. Quisemos que esse silêncio tivesse aqui muito peso. E não exageramos ao dizer que nesta antologia os silêncios falam mais alto do que as palavras. Por isso os poemas inéditos desempenham um propósito a considerar.
Qualquer que seja o futuro e o grau desalienatório que as potências governantes consigam para os indivíduos governados, cremos que o dever do escritor em geral e do escritor de versos em particular, será, onde quer que esteja, alimentar o mito da liberdade (se mito for) e apontá-lo ao homem alienado onde quer que ele por enquanto se encontre, a leste ou a oeste.
Nunca é ocioso, gratuito, estéril ou descomprometido quem faz da comunicação com os outros - os que também quiserem comunicar - o primeiro e último alvo. Porque a sociedade de transição em que vivemos raramente ou nunca permite momentos de inteira comunicabilidade, necessário e urgente é que esses momentos se realizem através da palavra escrita.
Daí que a literatura em geral e a poesia em particular tivesse sido para nós, enquanto recolhíamos poemas, esse grande, necessário, caudaloso e quente rio que faz comunicar as solidões. Mais do que deleite ou gozo estético, importaram para aqui os poemas que acordam, obrigam a ver claro, desmistificam, criam e mantêm um estado de tensão e atenção: ainda que para isso tenham de esbofetear ou ser grosseiros ou mesmo de sacrificar um pouco a originalidade e beleza da forma.
Acima de tudo que se não confunda, neste trabalho, poesia com arte literária. Tudo menos isso. À crítica e arte literária dos animais roedores nossos conhecidos, à crítica-paráfrase, à crítica-roda-pé-semanal, respondemos que a Crítica, além de consciência da crise, é Aposta; é saber antes do tempo o que o tempo vai dizer. Por isso não esperámos por amanhã. Hoje já somos amanhã e afirmamos que os esquecidos de agora (tem sido sempre assim) serão os lembrados de sempre. Aqui, nós apostámos.
Se a designação «poemas polémicos» significa alguma coisa, então designaríamos assim a maioria dos poemas escolhidos. Se a função do poeta, no nosso entender, é criar mitos novos que substituam os antigos, arranjar a realidade de maneiras cada vez mais aproximadas da sempre fugidia realidade-ela-própria através de combinatórias verbais, a sua função pode ser também e por isso a de criticar os mitos velhos pelo humor ou pela ironia, pela anedota ou pela sátira, ainda e sempre pelas analogias à distância, pela súbita associação de elementos nunca até aí conjugados.
Realismo crítico será talvez isto: ver o que se chama realidade mas é apenas uma aproximação dela - o tecido mitológico de que o nosso aparelho, sensorial, intelectual e afectivo a cobre - e , desintegrando esse tecido, contribuir para a elaboração de um novo que melhor se lhe ajuste. A esta fase ou aspecto da escrita poética não será difícil chamar-lhe polémico e considerá-lo a fase agente da literatura, aquela fase em que a literatura também pode ser acção. Preocupámo-nos em conseguir poemas, dentro desta perspectiva.
Poeta será o que dentro da História não colabora nela, mas está sempre para lá dela. O que resiste. Sempre, à procura da mutação das suas próprias estruturas. E hoje mais do que nunca se ouve o convite à grande metamorfose.
«Transmutar valores» (Nietzsche), «Transformar o mundo» (Marx), «Mudar a vida» (Rimbaud), são palavras de ordem que se tornaram lugares-comuns para a nossa época.
Ora, se tudo se desintegra, evolui, transforma, poderá o poeta persistir nas formas de pensar, querer e sentir, nas «formas de ser» segundo o padrão clássico, romântico, realista, neo-realista; surrealista ?
Se a cultura ocidental tem sido mais ou menos ininterruptamente um presídio para a liberdade espiritual, sentimos que está a formar-se e a engrossar uma contra-corrente. Os poetas aqui reunidos vão, parece-nos, na vanguarda dessa corrente.
Não pretendemos esgotar uma tendência nem sequer uma época (vinte anos – 1945/1965) da poesia portuguesa. Procurámos apenas poemas que documentem um período histórico e um espaço geográfico, que reflictam portanto o «ar do tempo», o clima sob o qual foram escritos. Preferimos a este propósito, e porque estamos demasiado atentos à realidade, não falar de realismo. De nenhum (sur) realismo.
Entre as correntes poéticas estabelecidas, foram escolhidos poemas e autores que, segundo os críticos de rodapé, talvez enfileirem, de boa ou má vontade, nesta ou naquela. Bem pouco nos importou a filiação ou corrente, ainda que em alguns casos saibamos importar muito aos próprios autores. Se de tudo isto resultar uma tendência definida e única, garantimos que a culpa não nos pertence nem estava nas nossas intenções fazer qualquer manifesto de escola, corrente ou ismo poético.
A função desta antologia pretende ser mais prospectiva que retrospectiva: olhou-se menos ao enquadramento histórico-literário dos autores e poemas do que à função catalisadora que no conjunto pudessem ter sobre o jovem poeta que procura um pouco às aranhas o norte. A maioria dos poetas, aqui reunidos, aliás, só estiveram na literatura porque (é óbvio) não os deixaram estar noutra parte. Não estiveram porém para literatos nem para as histórias literárias, o que é também óbvio e dá aos seus poemas significado para lá do meramente estético.
Por muito que a vanguarda poética desacredite a poesia convencional com função comunicante - teimámos (talvez sem êxito) em incluir poesias que, sugerindo sempre, não deixem contudo de significar, testemunhar, comunicar. Enfim, a desintegração do discurso, ultimamente tão reclamada, foi uma tentação de que procurámos fugir, por muito que o clima desintegratório (na literatura e fora dela) nos convidasse a tal.
Que a poesia, ao menos, tente integrar o homem desintegrado do nosso tempo-e-mundo! Não afirmamos que o faça, mas desejaríamos que o fizesse.
A alternativa para os formalismos imaginistas, ultra-esteticistas, concretistas, construtivistas, experimentalistas, etc., não é inevitável e necessariamente o retorno ao lirismo tradicional ou a queda (por não ter onde cair morta) nos neo-realismos de má morte, erradamente chamada, esta última, poesia social, alistada, engagé. Nem esteticismo nem poesia veículo de demagogia. «Entre a frivolidade e a propaganda», diria Camus e dizemos nós. Entre uma asneira (a formalista) e outra asneira (a realista) entendemos a literatura como acção e a essa acção chamamos Poesia.
Por isso Poesia será movimento para a liberdade, será liberdade em movimento. Isto e sempre isto e só isto.
O poeta pode não se dirigir às massas mas pode penetrar na intimidade das solidões e povoá-las. É um indivíduo que fala a outro indivíduo, reconhecendo-se reciprocamente como pessoas e não como objectos.
Se a poesia não for isto - um comunicar de solidões, uma telepatia activa e afectiva, um ardente e caudaloso rio de fraternidade - o que poderá ser ?
Se o poeta não for um homem situado no tempo e no espaço, em qualquer parte do mundo e em qualquer instante da História, falando, dando a mão a um outro, único, individual, só, concreto e real, que será, que poderá ser o poeta e a poesia mais do que vaidade, lixo, nada ?
Se a liberdade é o especificamente humano, então a melhor maneira de o poeta servir o homem e lutar por ele é praticar e ensinar a liberdade. Quando o escritor luta verdadeiramente com a sua arma - a palavra -, quando não está coarctado, mostra de facto que a literatura é acção e que a sua acção transforma o mundo, modifica a vida. A guerra é na verdade (e para ele) sobre o papel. E a arma é de facto a palavra, se acima da literatura literária estiver sempre qualquer coisa muito mais da que ela: o homem, talvez, esse macaco capaz de liberdade.
Entre uma literatura sem tensão nem atenção, vagueando num universo lunar, à procura da pedra filosofal e da quintessência da quintessência, uma literatura sem tempo e sem lugar, entre essa e uma outra que obriga o escritor a prévio programa ideológico, apenas pedimos ao poeta o clímax ou tensão que caracteriza o homem neutral mas comprometido, neutral com as instituições e comprometido com os indivíduos, tanto mais comprometido quanto mais neutral. É essa, julgamos, a posição do franco-atirador que, sem se alhear do mundo em que vive, se recusa porém a fazer parte dos «exércitos regulares».
Que esta antologia ou cancioneiro seja a voz dos que não podem, não sabem ou não querem falar.
E talvez a música possa ser outra. Aqui se encontram muitos versos para cantar e decorar. Que no conjunto e daqui par alguns anos, esta Poesia Portuguesa do Pós-Guerra possa constituir um documentário vivo de uma determinada consciência (ou
falta de consciência) histórica, eis uma ambição que só por modéstia não manifestamos.
Lisboa, Maio de 1965.
AFONSO CAUTELA
SERAFIM FERREIRA

(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado, com cortes e assinado também por Serafim Ferreira, no livro «Poesia Portuguesa do Pós-Guerra», Ed. Ulisseia, Lisboa, 1965

POETAS ANTOLOGIADOS

ALBERTO DE LACERDA
ALEXANDRE O'NEILL
ALEXANDRE PINHEIRO TORRES
ÁLVARO MANUEL MACHADO.
ANTÓNIO AUGUSTO MENANO
ANTÓNIO BARAHONA DA FONSECA
ANTÓNIO BORGES COELHO
ANTÓNIO CABRAL
ANTÓNIO DOMINGUES
ANTÓNIO GEDEÃO
ANTÓNIO JOSÉ FORTE
ANTÓNIO LUÍS MOITA
ANTÓNIO RAMOS ROSA
ANTÓNIO REBORDÃO NAVARRO
ARMANDO DA SILVA CARVALHO
AURELIANO LIMA
CANDEIAS NUNES
CARLOS EURICO DA COSTA
CARLOS GABRIEL
CARLOS PORTO
CASIMIRO DE BRITO
DANIEL FILIPE
DEODATO SANTOS
DOMINGOS JANEIRO
EDUARDO OLÍMPIO
EDUARDO VALENTE DA FONSECA
EGITO GONÇALVES
FERNANDO ASSIS PACHECO
FERNANDO ILHARCO MORGADO
FERNANDO LEMOS
FERNANDO MIGUEL BERNARDES
FERREIRA GUEDES
FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO
GASTÃO CRUZ
HELDER MACEDO
HENRIQUE SEGURADO
JOÃO APOLINÁRIQ
JOÃO RIBEIRO DE MELO
JOÃO RUI DE SOUSA
JOAQUIM NAMORADO
JOAQUIM VERMELHO
JORGE ARAÚJO
JOSÉ AFONSO
JOSÉ ANTÓNIO MOEDAS
JOSÉ AUGUSTO SEABRA
JOSÉ AURÉLIO
JOSÉ BIZARRO
JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS
JOSÉ CARLOS DE VASCONCELOS
JOSÉ CUTILEIRO
JOSÉ PRUDÊNCIO
JOSÉ SARAMAGO
LIBERTO CRUZ
LÚCIO DURO
LUÍS SERRANO
LUÍS VEIGA LEITÃO
LUÍSA DUCLA SOARES
LUIZA NETO JORGE
MANUEL ALEGRE
MANUEL MADEIRA
MARIA ALMIRA MEDINA
MÁRIO CESARINY DE VASCONCELOS
MÁRIO DIAS RAMOS
MÁRIO GONÇALVES
MÁRIO HENRIQUE LEIRIA
MARTA CRISTINA DE ARAÚJO
NATÁLIA CORREIA
NUNO TEIXEIRA NEVES
ORLANDO NEVES
PAPINIANO CARLOS
PEDRO ALVIM
PEDRO OOM
PEDRO DA SILVEIRA
RAUL DE CARVALHO
REINALDO FERREIRA
SEBASTIÃO DA GAMA
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDERSEN
VASCO COSTA MARQUES
VASCO GRAÇA MOURA

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PONTOS FUNDAMENTAIS DO NOSSO
CRITÉRIO DE ESCOLHA:

1.º Incluem-se poemas inéditos, ou publicados em livros, jornais e revistas, de autores revelados entre 1945 e 1965.
2.º Excluem-se poemas de autores que, embora tivessem aparecido naquele período, não se enquadram no âmbito e intenções desta antologia.
3º Excluem-se também poemas de autores que, embora de expressão portuguesa, não estão abrangidos pelo tempo e espaço desta antologia.♥♥♥


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