segunda-feira, março 11, 2013

ROGER CAILLOIS NA BIBLIOTECA AC-II






 caillois-2-ls> quarta-feira, 18 de Dezembro de 2002


UM TEXTO DE ROGER CAILLOIS:
A GUERRA NECESSITA
DE TODAS AS ENERGIAS

«A guerra representa bem o paroxismo da existência, nas sociedades modernas. Constitui o fenómeno total que as levanta e transforma inteiramente, cortando, por um terrível contraste, o curso calmo do tempo de paz.
É a fase de tensão extrema da vida colectiva, a da forte coesão das multidões e do seu esforço. Todos são roubados à sua profissão, ao seu lar, aos seus hábitos, ao seu lazer enfim. A guerra destroi brutalmente o círculo de liberdade que cada um prepara à sua volta para prazer próprio e que respeita no vizinho. Interrompe a felicidade e as quezílias dos amantes, a intriga do ambicioso e a obra prosseguida no silêncio pelo artista, o erudito, o inventor. Arruina indistintamente a inquietude e a placidez, nenhuma coisa privada subsiste, nem criação, nem alegria, nem a própria angústia: ninguém pode permanecer à margem ou ocupar-se de tarefa diferente porque não há ninguém que de um modo ou de outro não tenha de se lhe entregar. A guerra necessita de todas as energias.

O mesmo sucede com essa espécie de isolamento em que cada qual compõe a seu modo a própria existência, sem participar muito da coisa pública, numa altura em que a sociedade instiga todos os seus membros a um alerta colectivo que os situa logo lado a lado, os reúne, os empertiga, os aproxima de corpo e alma.
Chegou a hora em que a sociedade deixa bruscamente de ser tolerante, indulgente e como que ciosa de se fazer esquecer por aqueles cuja prosperidade protege. Agora apropria-se dos bens, exige o tempo, a fadiga, o próprio sangue dos cidadãos. O uniforme assinala de maneira visível que cada um deles abandona tudo quanto o distinguia dos outros para servir a comunidade, não como entende, mas consoante o que o uniforme lhe indica que deve fazer no posto que lhe atribui.
A analogia entre a guerra e a festa é portanto aí absoluta: ambas iniciam um período de forte socialização, de comunhão dos instrumentos, dos recursos, das forças; interrompem o tempo em que os indivíduos se afadigam cada um para seu lado numa multitude de domínios diferentes. Por sua vez, estes dependem uns dos outros, sobrepõem-se mutuamente, muito mais do que ocupam lugar definido numa estrutura rigorosa.
Nas sociedades modernas a guerra representa por este motivo o único momento de concentração e absorção intensa no grupo de tudo o que ordinariamente tende a manter uma certa zona de independência.»

Roger Caillois, in L'Homme et le Sacré



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