segunda-feira, março 11, 2013

ANTONIN ARTAUD: A CATARSE TRÁGICA




    ANTONIN ARTAUD FRENTE AO «MAL DE EXISTIR»


     O TEATRO E A MORTE OU A CATARSE TRÁGICA (*)


(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no  suplemento literário do «Jornal de Notícias» (Porto), em 23.Janeiro.1964

1 — A aventura poética preludia a aventura trágica. A palavra antecede ou prefacia o silêncio, a existência o ser, a vida a morte. E a literatura o teatro.
Entre uma e outra aventura, a quietude ou abstenção mística, ausência de palavra e de acto, tempo de suspensão entre a palavra e o silêncio, entre o poético e o trágico, o literário e o teatral, silêncio entre o silêncio da linguagem e a linguagem do silêncio.
Limiar da encenação trágica, a ascese mística elide palavra — a palavra que era para o coro dionisíaco uma das máscaras — e acto. O corpo do místico antecede imediatamente o corpo do actor. A mímica do êxtase prefigura a mímica teatral. Na meditação mística ou existencial inicia-se  a   «doença»   que  é  o   pensar sobre   a   morte   ou   sobre   o   «mal de  existir»,   doença   que   eclodirá  na   morte em  acto   da   tragédia.
Na   exasperada  individuação   do místico  atinge   a   vida   uma das fronteiras com a morte, fronteira idêntica à  que se toca  na tragédia.
Actor é o que põe em acto a morte, o que, vivendo a morte, a esconjura ou exorcisma, por catarse, do corpo do espectador.

2 — Ao falar de quietismo ou abstenção mística, pressuponho incluída a meditação existencial de quantos, dentro ou fora da ortodoxia cristã, heréticos ou não, se interrogaram sobre a «mal de existir», sobre a «doença de existir».
Todos  os  que,  de   Buda   a   Shopenhauer, de Sócrates a Pascal, de Ésquilo a Nietzsche, de Dostoievski a Chestov, de Santo Agostinho a Kierkegaard, de Kafka a Fernando Pessoa, de Raul Brandão a Camus, repuseram o eterno enigma, reformularam a eterna pergunta, sem nunca ouvirem a resposta, nem por uma ideia, nem por uma crença, nem por um argumento, nem por uma evidência.
Não  houve  promessas   de   outros   mundos,  não houve  paganismos e neo-paganismos, não houve  religiões de igreja e  religiões  de Estado, messianismos políticos e políticos messias, humanismos e humanistas, salvações e salvadores do mundo, não houve evidências, não houve sistemas, promessas de felicidade e cura, o curto ou longo prazo, para este e para o outro mundo, não houve talismãs, técnicas, poderes, ciências, não houve optimistas e optimismo, não houve nada, nada que abafasse a voz trágica, nada que impedisse o homem de temer a morte e desafiá-la, de lhe fugir e para ela fugir, de a tentar e de nela se tentar, nada que explicasse a esfinge, nada que matasse a fome de absoluto, nada que resolvesse o mistério da existência. Nada acalmou nem calou a voz trágica, voz do silêncio, voz das vozes que o homem perdeu e nele se perderam, voz de quando já nada se sabe, pode e quer dizer.

3 — Na tragédia, nada se afirma e nada se nega. Tudo vem do enigma e a ele volta. A tragédia é o campo infinito da interrogação. O campo da liberdade.
Mas fora do teatro, do teatro quimicamente puro que é a tragédia, o homem não deixa de prefaciar a morte, de pensar a morte, de interrogar a morte. Não deixa por isso de falar, de escrever, de, em suma, «fazer literatura».
Esta a única justificação que ainda hoje pode ter a literatura: a de servir de prefácio à encenação trágica, à montagem teatral, à acção do actor. O autor serve o actor.
Fora isto, que motivos, além dos inconfessáveis, pode haver para defender ainda a literatura? Fora isto, que pode ser a literatura além de «cochonnerie» ?

4 - Para Artaud, o teatro nunca poderia ser o que a degradação burguesa fez dele; uma dependência da literatura, da linguagem, da imunda palavra; o teatro, na sua origem, é a tragédia, assim como a literatura, na sua origem, é a poesia.

5 - Quando o teatro procura a sua essência, ou origem ou substância, ou autenticidade, procura-a nas manifestações ditas religiosas de civilizações perdidas e ignoradas da Civilização ocidental e diz-se que reassume o carácter religioso ou de religião, o carácter de comunicação esotérica ou comunicação sem palavras oposta à comunicação exotérica ou literária.
Este (o teatro da morte e do sagrado e do esotérico) é o teatro das trevas, das vísceras e artérias fluindo, do esgar, da mímica, do ritmo e do ritual, da orgia, da dança, da festa, o teatro de Diónisos, o teatro do actor e só do actor.

6 — No conspecto trágico, a morte não é um apêndice, um terminal da vida. No contexto trágico, a morte é outra realidade (outra vida?) que a vida desconhece.
Medianeiro entre uma e outra realidade, é o actor e, por extensão, o teatro. O actor representa a morte. Induz a morte da potência ao acto e do acto ao facto.
O autor trágico pensa a morte. O actor trágico vive a morte. Pensar a morte é ser doente, doente do «mal de existir».
O tempo é para o suicida, o doente incurável, o condenado à morte, o soldado em campanha, para todo o que pensa a morte, enfim, a única realidade.
O tempo é para o autor trágico, para o filósofo existencial (que geralmente escreve diários, talvez no desejo de fazer parar o tempo...), para o místico, para todos os que pensam a morte, enfim, a única realidade.
O tempo é para o actor, que vive a morte, a única realidade
Vivendo a morte, o actor (trágico) vive a liberdade que é a morte.
A liberdade, para ser liberdade, infinitamente se reclama a si própria, até à liberdade das liberdades — a morte.
A   liberdade   é   o   único   absoluto. E só o teatro, na pureza da  sua   origem - a   tragédia – a     representa.  Teatro e morte identificam-se.  Ser   absolutamente  é  a morte de teatro.
Sinónimos   entre   si  -  tragédia,  teatro e  morte são  - também sinónimos  de  alegria,   de   dionisíaca alegria, e os autores trágicos não
são «pessimistas» como diz a crítica,   mas   apenas   isso:  trágicos.
 
7 — A    guerra     sacralizou-se,  na   guerra    está,   segundo    Roger     Caillois,   o  sucedâneo   das   festas,  dos ritos orgiásticos, do coro dionisíaco.   E   no    único,     exclusivo, desmedido  palco do  mundo  esta  ria hoje, realizando-se pelo avesso, a tragédia quimicamente pura, a   essência  do  teatro.
Erguer   pequenos palcos, neste    palco gigante,   parecerá    uma
redundância.  Mas  não  é. É  virar a tragédia para o direito. É passar a ferro e a miniatura o mundo de  hoje.   Ê   o  eco  do  eco  do  eco do  coro  dionisíaco.
«Tempo de excesso, de violências, de ultraje (L’Homme et le Sacré, de Roger Caillois, pág. 230) de alguns homens sobre todos os homens, eis que outra minoria ergue sobre o palco de tábuas a réplica desse excesso, dessa violência, desse ultraje.
Só com a diferença; enquanto no pequeno palco o trágico é de significação individual, no palco da história o trágico é de proporções colectivas e os assassinos não prestam contas a ninguém. Falsos Diónisos, possessos apenas de raiva (Tisífone), de carnificina (Megere), de inveja (Alecto), nada há nessas «erínias que lembre e honre a fúria dionisíaca. Por isso é necessário continuar representando, em palco aberto, o último acto da tragédia, ritual de sacrifício e crueldade em que o homem será a vitima oferendada a si próprio. A encenação está feita, o palco montado, os actores em acção.
AFONSO   CAUTELA




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