segunda-feira, março 11, 2013

ROGER CAILLOIS NA BIBLIOTECA AC-I

1-3 - caillois-1-ls-> quarta-feira, 18 de Dezembro de 2002-scan

A AVENTURA POÉTICA
PRELUDIA A AVENTURA TRÁGICA(*)


[ ?????] – 1 - A aventura poética preludia a aventura trágica. A palavra antecede ou prefacia o silêncio, a existência o ser, a vida a morte, e a literatura o teatro

Entre uma e outra aventura, a quietude ou abstenção mística, ausência de palavra e de acto, tempo de suspensão entre a palavra e o silêncio, entre o poético  e o trágico, o literário e o teatral.

Silêncio entre o silêncio da linguagem e a linguagem do silêncio.

Limiar da encenação trágica,  a ascese mística elide a palavra - que era para o coro dionisíaco uma das máscaras - e acto. O corpo do místico antecede imediatamente o corpo do actor. A mímica do êxtase prefigura a mímica teatral. Na meditação mística ou existencial inicia-se a «doença» que é o pensar sobre a morte ou sobre o «mal de existir», doença que eclodirá na morte em acto da tragédia. Na exasperada individuação do místico atinge a vida uma das fronteiras com a morte, fronteira idêntica à que se toca na tragédia.

2 - Actor é o que põe em acto a morte, o que, vivendo a morte, a esconjura ou exorcisma, por
catarse, do corpo do espectador.

Ao falar da quietismo ou abstenção mística, pressupondo incluída a meditação existencial de quantos, dentro ou fora da ortodoxia cristã, heréticos ou não, se interrogaram sobre o «mal de existir», sobre a «doença de existir».

Todos os que, de Buda a Schopenhauer, de Sócrates a Pascal, de Ésquilo a Nietzsche, de Dostoievski a Chestov, de Santo Agostinho a Kierkegaard, de Kafka a Fernando Pessoa, de Raul Brandão a Camus, repuseram o eterno enigma, reformularam a eterna pergunta, sem nunca ouvirem a resposta, nem por uma ideia, nem por uma crença, nem por um argumento, nem por uma evidência.

Não houve promessas de outros mundos, não houve paganismos e neo-paganismos, não houve religiões de igreja e religiões de estado, messianismos políticos e políticos messias, humanismos e humanistas, salvações e salvadores do mundo, não houve evidências, não houve sistemas, promessas de felicidade e cura, a curto ou longo prazo, para este e para o outro mundo, não houve talismãs, técnicas, poderes, ciências, não houve optimistas e optimismos,  não houve nada, nada que abafasse a voz trágica nada que impedisse o homem de temer a morte e desafiá-la, de lhe fugir e para ela fugir, de a tentar e de nela se tentar, nada que explicasse a esfinge, nada que matasse a fome de absoluto, nada que resolvesse o mistério da existência. Nada acalmou nem calou a voz trágica, voz do silêncio, voz das vozes que o homem perdeu e nele se perderam, voz de quando já nada se sabe , pode e quer dizer.

3 - Na tragédia, nada se afirma e nada se nega. Tudo vem do enigma e a ele volta. A tragédia é o campo infinito da interrogação. O campo da liberdade.
Mas fora do teatro, do teatro quimicamente puro que é a tragédia, o homem não deixa de prefaciar a morte, de pensar a morte, de interrogar a morte. Não deixa por isso de falar, de escrever, de, em suma, «fazer literatura».

Esta a única justificação que ainda hoje pode ter a literatura: a de servir de prefácio à encenação trágica, à montagem teatral, à acção do actor. O autor serve o actor.

Fora isto, que motivos, além dos inconfessáveis, pode haver para defender ainda a literatura? Fora isto, que pode ser a literatura além de "cochonnerie»?

4 - Para Artaud, o teatro nunca poderia ser o que a degradação burguesa fez dele: uma dependência da literatura, da linguagem, da imunda palavra; o teatro, na sua origem, é a tragédia, assim como a literatura, na sua origem, é a poesia.

5 - Quando o teatro procura a sua essência, ou origem ou substância, ou autenticidade, procura-a nas manifestações ditas religiosas de civilizações perdidas e ignoradas da Civilização, e diz-se que reassume o carácter religioso ou de religião o carácter de comunicação esotérica ou comunicação sem palavras oposta à comunicação exotérica ou literária.

Este (o teatro da morte e do sagrado e do esotérico) é o teatro das trevas, das vísceras e artérias fluindo, do esgar, da mímica, do ritmo e do ritual, da orgia, da dança, da festa, o
teatro de Diónisos, o teatro do actor e só do actor.

6 - No conspecto trágico, a morte não é um apêndice, um terminal da vida. No contexto trágico, a morte é outra realidade (outra vida?) que a vida desconhece.

Medianeiro entre uma e outra realidade, é o actor e, por extensão, o teatro. O actor representa a morte. Induz  a morte da potência ao acto e do acto ao facto.

O autor trágico pensa a morte O actor trágico vive a morte. Pensar a morte é ser doente,
doente do «mal de existir»

O tempo é para o suicida, o doente incurável, o condenado à morte, o soldado em. Campanha,  para todo o que pensa a morte, a única realidade.

O tempo é para o actor que vive a morte, a única realidade.

Vivendo a morte,o actor (trágico) vive a liberdade que é a morte.

A liberdade, para ser liberdade, infinitamente se reclama a si própria, até à liberdade das liberdades - a morte.
A liberdade é o único absoluto. E só o teatro, na pureza da sua origem - a tragédia - a representa. Teatro e morte identificam-se. Ser absolutamente é morte e teatro.

Sinónimos entre si,  tragédia, teatro e morte são também sinónimos de alegria, de dionisíaca alegria, e autores trágicos não são pessimistas como diz a crítica, mas apenas isso: trágicos.

7 - A guerra sacralizou-se, na guerra está, segundo Roger Caillois, o sucedâneo das festas, dos ritos orgiásticos, do coro dionisíaco. E no único, exclusivo, desmedido palco do mundo estaria hoje, realizando-se pelo avesso, a tragédia quimicamente pura, a essência do teatro.

Erguer pequenos palcos, neste palco gigante, parecerá uma redundância. Mas não é. É virar a tragédia para o direito. É passar a ferro e a miniatura o mundo de hoje . É o  eco do eco do eco do coro dionisíaco.

Tempo de excesso, de violência, de ultraje (L'Homme et Le Sacré , de Roger Caillois, pág.. 230) de alguns homens sobre todos os homens, eis que outra minoria ergue sobre o palco de tábuas a réplica desse excesso, dessa violência, desse ultraje.

Só com a  diferença; enquanto no pequeno palco o trágico é de significação individual, no palco da história o trágico é de proporções colectivas e os assassinos não prestam contas a ninguém.

Falsos Diónisos, possessos apenas de raiva (Tisífone), de carnificina (Megere), de inveja (Alecto), nada há nessas erínias que lembre e honre a fúria dionisíaca.

Por  isso é necessário continuar representando, em palco aberto, o último acto da tragédia, ritual de sacrifício e crueldade em que o homem será a vítima oferendada a si próprio. A encenação está feita, o palco montado, os actores em acção.
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(*) Esta estranha prosa de Afonso Cautela, claramente sob o efeito do «Théatre et son Double» de Antonin Artaud, só cita Roger Caillois e foi publicada no suplemento literário do «Jornal de Notícias», Porto, em data por identificar


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