VERSOS AC 1960
aaa-ml-1960-> 25-05-2005 10:38:13
ELE EXPLICA-SE EM PROSA SOBRE OS VERSOS QUE ESCREVEU
[A data do texto a seguir digitalizado deve ser mais ou menos o ano 1960 ou 1961, à volta da publicação do segundo livro de versos e quando já se preparava para um terceiro de poemas só sobra cidade. Como ele diz no file
NOTA FINAL
Só uma necessidade quase obrigação poderia justificar hoje a reincidência do autor em publicar versos.
Na verdade, o silêncio significa, por um lado e em relação a determinadas constantes históricas que se eternizam, um quase religioso dever a que ninguém de consciência se deve furtar; por outro lado, o silêncio pode querer dizer também, mais do que abdicação, uma covardia de implícitas condescendências.
Vive-se, não há dúvida, um tempo de agrestes contradições e nunca se sabe ao certo o que deixa de ser coerência para aparentar abdicação e o que parece demissão e vem afinal a ver-se que foi teimosia na fatalidade, compensação do desespero.
Não fica, neste livro, a parte submersa do «iceberg»: como se sabe é sempre a maior. Nele se insere, em 10 anos de viagem pelo papel, o que ao mesmo tempo seja documento, testemunho, presença. O que representa atenção ao quotidiano que, se nos parte e reparte na fragmentação da violência, da doença, da solidão, é também o húmus onde o escritor ou o escritor de versos pode ouvir o coração dos outros de quem tão afastado anda pelas subserviências da estúpida sobrevivência profissional.
Queria de facto que o sofrimento humano fosse, mais uma vez, o protagonista da história. Desta história, contada em breves episódios e apontamentos do dia a dia da cidade. Desta história dos que não têm história. Não canto o anónimo por regozijo, mas porque só vale a pena cantar o sagrado e, no mundo des-sacralizado a que vamos chegando, só a dor dos humildes e humilhados é ainda sagrado, quer dizer, uma hipótese de absoluto a que referir tudo.
Os que entre nós sabem de poesia, já sabem que o autor não procura a forma: em vão, portanto, o tentariam detectar desta feita. Dos versos se serve ele, porque são murro mais directo (na mesa do jogo) ou abraço mais terno.
É uma afirmação que leva consigo a consciência colectiva que houver, as esperanças comuns a construir.«Engagé», se assim o rotularem. Péssimo poeta, se assim o quiserem também. Mas cantar é sina de todos os que, na efemeridade e fragilidade do tempo destinado a uma vida, não se resignam ao cor de rosa de nenhum optimismo mas muito menos aos becos sem saída dos desesperos.
Quando se canta, pesa menos a vida, e é mais fácil a comunicação. Só por isso o autor reincidiu nesta asneira que ele considera a literatura em geral e os versos em particular.
AFONSO CAUTELA
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ANEXO A NOTA FINAL
Em livros e artigos de jornais, os críticos portugueses têm proclamado, já por várias vezes, diversos decretos-lei definindo o que é e o que não é poesia.
Atento a esse intenso movimento legislativo, fui verificando, através dos textos teóricos e dos exemplos práticos com que esses críticos costumam ilustrar as suas palavras de ordem, que os versos deste volume não obedecem às normas dali emanadas e que, por isso, não esperam estar de acordo com eles nem que eles venham a estar de acordo comigo.
Fora, portanto, do que os mais avançados teóricos pressupõem que seja a poesia, se não desisti de publicar parte da produção que , através dos anos, a gaveta guardou, um motivo devo invocar: parece-me necessário um discurso que testemunhe em duas frentes - a da abjecção e a da fraternidade. O trabalho profissional, que faz de nós ridículas sombras de nós próprios, não consegue, porém, matar de todo a figura humana que teimamos em manter sobreviva.
E o discurso literário - os versos, pela síntese do essencial que facultam - parece-me o único meio daquele testemunho. É uma forma de equilíbrio de consciência que nada terá a ver com poesia - mas quem disse que tem, ou que não tem? - mas que tem a ver tudo com a posição do autor nas ruas desta cidade e nas cidades deste mundo.
Afonso Cautela ■
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