quarta-feira, janeiro 23, 2008

MÍSTICA AC 1962

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segunda-feira, 20 de Junho de 2005-> [várias dúvidas neste texto hoje digitalizado. A quem se dirigia a carta se é que era carta. Porque o intitulei na altura de «manifesto» e o classifiquei de 3 estrelas. Porque consegui capturar o essencial da minha vida em 2 páginas? Porque tinha a palavra «alma» esse peso em 1962, peso que só tive coragem de reaver com o etienne guillé em 1992, 30 anos depois? Eterno retorno circular do tempo? ]

E ISTO NÃO É FRANCISCANISMO

20-3-1962

Insisto na «alma» e na «grandeza de alma», palavras, ao que parece, antiquadas e em desuso. Claramente, é isso e só isso que procuro. Não me insurjo, invejoso e ressentido, contra os da «alma grande». Procuro-os e não posso viver sem eles. Procuro-os no convívio dos mortos (nos livros) e no convívio dos vivos.
Os vivos, porém, quantas vezes me desiludem? Não sou grande de alma, mas por isso procuro os que o são, e só com esses não tenho veneno. Porque não me iludem nem me intrujam os atributos - sejam eles quais forem - exteriores à «grandeza de alma». Podem ser talentosos artistas, insignes eruditos e ilustrados críticos, competentíssimos doutores, profissionais valiosos, técnicos esplêndidos. Podem ter tudo: riqueza, prestígio, celebridade, Mas ter - títulos ou dinheiro ou influência ou sabedoria ou o diabo - não é ser.
A minha raiva, o meu veneno, o meu desgosto sobre tudo, sobre quase tudo o que os contemporâneos das artes , das letras, das ciências e da política fazem, é só e sempre e apenas por isso: por os não ver maiores e por me obrigarem a ser - por contágio - pequenino. Não suporto, não perdoo a mediocridade de «alma». Não tenho política, nem ética, nem estética, nem lógica, porque a alma não existe compartimentada. Não tenho a alma repartida por gavetas - nem quero ter. E vou aos arames quando me obrigam a gavetas, ou vejo os outros obrigarem-se.
Só exijo isto: tenhamos menos e sejamos mais: tenhamos menos instrução no miolo, menos feijões no bucho, menos notas no bolso, menos petulância no olhar. Mas sejamos mais, sejamos ambiciosamente mais. Nem as artes, nem as letras, nem as ciências, nem as políticas, nem qualquer palavra de cotação corrente na ordem social humanista, na ordem social do Ter e do Haver, podem satisfazer a fome de ser de quem a tem. Estamos carregados de bens (e isto não é franciscanismo), queremos ter tudo e não somos , por isso, nada.
Isto não é metafísica. É o que define a fome e a raiva da verdadeira Revolta. É verdadeiramente o que dita a todos os autores do Nada - ao Álvaro de Campos, ao Fernando Pessoa, ao Artaud, ao Beckett, ao Kafka - o Bocejo, o Tédio, a Angústia mortais.
Necessariamente que sim, que conheço e reconheço o alvo a atingir pelo nosso braço e pela nossa revolta. Mas o que desarma essa revolta é ver que os supostos camaradas deveriam afinal ser também alvejados . Esta pátria, este bocado de mundo que a história confinou no nome de Portugal, está arrendado a meia dúzia de proprietários. Também o resto do mundo se pode dizer que é pertença de meia dúzia de poderosos . O alvo é claro: alguns exploram milhões.
É claro que conheço e reconheço isto. É claro que nem lhes posso ter ódio, porque o ódio é ainda uma forma de amor e esses estão para lá do ódio e do amor. Para esses só o escarro, o vómito, um tiro - mas um tiro certeiro. É claro que, se metafísico e obsceno e indeciso sou com o falar de «alma» e de «grandeza de alma», não sou metafísico nem indeciso a respeito dos senhores do mundo: o seu a seu dono, e para esses , toda a pólvora do mundo, nada mais se lhe dariam[?] do que eles deram ao mundo.
Mas no entanto os senhores do mundo não governam sós. Pagam a toda uma Organização que os defende, mantém, oculta e desculpa. A toda uma organização onde até nem faltam filósofos, onde até nem faltam técnicos, onde até nem faltam artistas e escritores; filósofos, técnicos e artistas do Ser, que, por isso, me não interessam enquanto filósofos, enquanto técnicos, enquanto artistas mas apenas enquanto homens.
Eis o que tu ouviste de mim sob o nome de «homem essencial», isto é, os homens que , para lá de todos os atributos acidentais do ter e do haver, se consagram a ser. Eis porque esfomeadamente e revolucionariamente os procuro. Eis porque me impacienta ver, inclusive nos companheiros revolucionários, apenas e sempre a mentalidade do ter e do haver, a propriedade privada em todos os campos.
Não é negativa a minha raiva nem corrosivo o meu veneno. É apenas dor, dor de chafurdar neste deserto e não ver luz, nos olhos dos que mais obrigação tinham de a dar ao mundo.
Não forço os meus amigos e inimigos a nada. Nem sou inimigo de ninguém, porque não procuro rebaixá-los, liquidá-los, vencê-los. Procuro ajudá-los para que me ajudem a sair deste poço de merda e de mediocridade e de mentira.
Chama-lhe poesia e porque não? Mas o nome não interessa. Não interessam nomes para quem procura tudo. E tudo, tudo o que exijo é tão pouco, tão simples! Apenas que os «homens» com aspas, depois de servirem todos os senhores, arranquem as máscaras e fiquem homens sem aspas, nasçam de si próprios.
Os meus ataques parecem provir sempre de um incurável ressentimento, talvez porque não tenho eu nada do que os faz «grandes»: sabedoria, dinheiro, inteligência, talento técnico, dons artísticos, influência, profissão, classe, lugar, celebridade.
Mas vê tu que não é ressentimento: é antes o desejo apaixonado de os ver livres de toda essa canga, de os ver livres de tanto ter e haver, até que consigam ser. Inexplicavelmente, ter alma era o que todos podiam ter (ao ter alma chama-se afinal ser), porque não depende das várias heranças que lhe cabedam em sorte, das influências que conquistam ou das vitórias que ganham (fazem) inexplicavelmente, o mais simples (tão simples que é ridículo insistir nisto) é o mais acessível, é o mais raro. E que raro! E que raro um homem, meu caro
Não nos iludamos com as nossa fantochadas para os outros e as dos outros para nós. Não nos iludamos. Decorámos todas as teorias, temos no bolso a chave de todas as revoluções, arrotamos toda a civilização que se acumulou, acumula e acumulará. Mas um homem - onde está um homem? No meio de tanta gente revolucionária, técnica, talentosa, sábia, onde está um homem? Onde está o coração inteligente, a inteligência emotiva e apaixonada, essa ternura viril, essa virilidade comovida - essa tão pobre, tão rara coisa que é um homem?
É claro também: se a caridade bem entendida começa por nós - e se é sobre mim próprio que descarrego a maior dose de veneno, sempre que sucumbo à filosofia do ter - é também aos que considero meus mais próximos que menos posso perdoar e sobre quem descarrego maior percentagem de ácido.
Afinal não me posso sentir acima das minha ninharias que são toda a corrupta jovem literatura e todos os corruptos jovens literatos. É porque mais os amo que mais impiedosamente os ataco. Quereria ser indiferente a essa incrível república das reputações literárias, mas indiferença, aí, já era desumanismo e desumanidade, já era traição ao que procuro - sabendo que o procuro - e os outros procuram, sem saber que procuram.
Calmamante, insidiosamente, podia dedicar-me aos meus versinhos e ir colaborando na glorieta, minha e dos outros. Mas a glória para que estamos aqui será a gloriazinha das artes e das letras? O que ambicionamos será macaquearmos cada vez mais o homem ou humanizarmos o macaco?

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