PIER PAOLO PASOLINI: UMA HERANÇA DIFÍCIL-II
PASOLINI -I
25-10-1968 - A imprensa aproveitou, há tempo, um poema de Pier Paolo Pasolini, para com ele especular contra o escritor de Os Vádios e contra as ideias progressistas do cineasta de Il Vangelo Secondo Mateo. Destacando uma passagem do referido poema, em que o autor se dizia ao lado dos polícias quando estes enfrentavam os jovens estudantes em rebelião, logo se concluiu que o autor de Una Vita Violenta estava ao lado da ordem contra a subversão.
Lendo o poema na totalidade, ver-se-ia que não era isso: Pasolini estava ao lado dos filhos do povo que, na profissão de polícias, as circunstâncias forçavam a usar de menos bonomia para com os universitários, filhos da burguesia na sua maior parte, e talvez com alguma da arrogância que à sua classe é inerente.
Difícil, por vezes, é distinguir entre essa arrogância e o protesto sincero de um humilhado, de um ofendido, de um vencido e perseguido; difícil é distinguir entre a crítica que se exerce por necessidade e a que se pratica por supérfluo; difícil é, na juventude do nosso tempo, distinguir entre a que faz realmente causa comum com as vítimas da exploração e os que, embora em nome destes, não deixam de ir aproveitando as oportunidades de (em nome também do direito à crítica) ir explorando e cilindrando os explorados de sempre. De ontem e de hoje, pelo menos. Porque amanhã - como diria Pasolini - a ver vamos.
ARROGÂNCIA JUVENIL
A petulância e arrogância juvenis, que muitos censuram e condenam demasiado sumariamente, resulta quase sempre de um abuso no direito de crítica que não foi ganho mas, como tudo o mais, recebido por herança, ou usurpado.
António Sérgio, que ensinou entre nós o exercício da crítica, nos únicos termos em que ela é legítima e fecunda, vai sendo esquecido pelas gerações nascentes que se julgam possuidoras de um direito absoluto só pelo facto de serem jovens. Ora a juventude não confere a ninguém especiais regalias (a não ser as regalias que já estão outorgadas por outras vias ) nem absolve ninguém de erros e abusos.
A confusão entre as instituições que devem alvejar-se e os indivíduos que devem respeitar-se, parece-me a razão principal dessa impertinente arrogância, que a outros convém diagnosticar de maneira diferente e atribuir a causas outras.
Não se aprendeu a lição de António Sérgio e a confusão entre os alvos que a crítica deve visar, continua. Se a confusão persiste, porém, não há direito à crítica mas apenas o uso arbitrário do juízo arbitrário sobre arbitrários alvos, como um brinquedo mais ou mais um privilégio que o menino-família herdou ou comprou.
Uma recente arrogância entre certas camadas juvenis nascidas na burguesia abastada, tem sido confundida, por vezes, pelos observadores que gostam de confusões, com uma irremediável decadência da juventude e uma revolta "sem causa".
As várias oportunidades que aos jovens são dadas, conforme o estrato social de onde procedem (conforme a classe a que pertencem), determinam o comportamento dos vários e diferentes sectores da juventude, que não pertence toda à classe dominante, que não é toda igual nem se guia toda pelas mesmas directrizes nem apresenta sempre o mesmo padrão de vida e as mesmas vias de desenvolvimento ou subdesenvolvimento.
A REVOLTA
O que vem complicar o problema - que se poderia limitar a uma perfeita identidade entre gerações jovens e respectivas classes de onde procedem - é a revolta (que nos filhos das classes da abundância pode manifestar-se) assimilada com a justa cólera das classes sem privilégios.
PASOLINI - II
7/Novembro/1969 - Esta atitude de Pasolini, talvez
precipitada ou inconsiderada, para lá de tudo o que tenha de discutível ( e
tem), para lá de todos os problemas que levanta de maneira tempestuosa,
efervescente (temperatura pouco aconselhável para se discutirem problemas de
brecha, de base) , constituiu um belo pretexto para os detractores do escritor
de Vida Violenta e do cineasta de Il Vangelo, para os que o consideram um
perigoso romântico e um herege sistemático da linha dura do marxismo, da
ortodoxia. marxista. Mas, também, para os que não estão apenas contra Pasolini e as suas posições estéticas ou políticas mas contra aquilo de que Pasolini é exemplo e paradigma: o intelectual que, de origem pobre, nunca deixa de ser uma coisa e outra (intelectual e pobre ) e, em vez de ir para as barricadas ou acomodar-se ao statu quo burguês, se limitou a travar a luta (apenas humanista, não política) da palavra escrita.
Para lá do partis-pris contra Pasolini, o problema que persiste é saber se, de facto, não resta chance, hoje e nos tempos que se avizinham, de que uma posição humanista coexista com outras, de acção directa. Será que, reconhecida a legitimidade inadiável e necessária da violência, devem perecer, pelo suicídio ou pela fogueira, todos quantos, pela palavra e só pela palavra, desejam travar a luta necessária?
Sem dúvida, os jovens das barricadas têm razão. Mas é necessário ter coragem para afirmar e sustentar que não são traidores e são legítimos os métodos menos directos mas mais profundos, menos "engagé" mas mais persistentes, menos imediatos mas mais a longo prazo, que continuam a ser defendidos por intelectuais como Pasolini. Ou Edgar Morin.
ACUSAÇÃO:
O lumpen-proletariat não tem função revolucionária e o elogio, a exaltação que dele faz Pasolini, ou outros como ele ( Gorki, Beckett, Leduc, Sarrazin, Korzinski, Richard Wright) não merece qualquer consideração
DEFESA:
A esta acusação, assim brutalmente formulada, com ar de evidência indiscutível, é difícil responder.
De facto, o lumpen pode não ter qualquer função política positiva. Mas desprezá-lo só por isso é pressupor que nenhuma categoria existe além da política e que tudo terá de se reduzir à política.
A crónica dos vádios de Pasolini, Sarrazin, Genet, Baldwin ou Beckett é a crónica dos desprezados, dos humilhados e ofendidos que, de tal modo alienados desde a origem, de tal modo inconscientes da sua própria condição, nem sequer isso têm como arma de defesa. São os seres menos defendidos do mundo.
E quem diz o lumpen, no sentido estrito, diz todo o oprimido, todo o doente ou anormal, a criança, o velho, a mulher (escrava doméstica), todo o que sofre uma situação de inferioridade, minoria ou perseguição, até ao momento em que se mentaliza e organiza para a luta. Enquanto não luta, no entanto, a sua condição humana (sub-humana, embora) não pode ser desprezada ou menosprezada. E desprezá-la em nome de um imediatismo político, é entrar numa política sem humanismo à qual é preciso opormos todas as nossas forças, e uma resistência pertinaz.
Ora ao artista, enquanto tal, e sem desdizer ou contradizer a sua actuação política, compete cuidar com amor da condição humana, esteja ela onde estiver, mas principalmente se for a condição dos humilhados e ofendidos. Negar isto é participar de uma concepção e actuação que não deixa esperança alguma aos homens. No entanto, há quem o negue, e ao ouvir quem o nega poderá desesperar-se. Felizmente, há também quem prossiga a ingratíssima faina de manter a imagem do homem, em meio da refrega política .
Ainda e sempre, Edgar Morin é o intelectual que hoje se encontra na vanguarda desse movimento. Com todos os riscos que tal posição implica, ele defende, contra o terror, o humanismo .
ACUSAÇÃO:
A polícia pode considerar-se um proletariado, mas completamente alienado, sem consciência nem função revolucionária. Um polícia, quando faz a escolha, é culpado. Nada de os considerar inocentes, como parece ter considerado Pasolini quando publicou esse infeliz poema.
DEFESA:
De novo se retoma o grave problema - se vamos desprezar um proletariado porque é alienado, então que fazer?
Alienação não é culpa, mas condição contra a qual, por vezes, não é possível lutar.
Quantas alienações não se verificam ao nível do burguês médio, misto de intelectual bem-pensante, essas sim, bem dignas de desprezo porque o intelectual está consciente delas e a elas se acomoda mais ou menos cinicamente.
Talvez que a confusão reine neste capítulo e a dicotomia proposta por Pasolini esteja viciada desde a base. Mas, equívoco ou não, e tudo o que venha como contra-equívoco, há casos de incoerência entre pessoas que só o poder assumido ainda pela classe a que essas pessoas pertencem permite continuar sem denúncia.
A verdade é esta: sob o critério humanista (a que se chamará romântico, quimérico, idealista - e essas serão as acusações que o franco-atirador terá de suportar) eu estou mais perto de um oprimido, de um humilhado e ofendido, de um vadio, de um "hors-texte" do que de alguns endiabrados meninos burgueses que tão revolucionários se querem e se pretendem.
"La politique mène a tout" - mesmo ao seu contrário. Em tais casos, deveremos estar atentos. Porque então é dialéctico resistir. ♦
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