GILBERT CESBRON: O OUTRO DEVER
1-2 - 58-06-15-ls> - cesbron-1> segunda-feira, 19 de Maio de 2003
GILBERT CESBRON: O OUTRO DEVER (*)
(*) Este texto de Afonso Cautela terá sido publicado no quinzenário «A Planície» (Moura), 15-6-1958
À loucura do padre Pedro, que podemos presenciar ao longo deste livro de Gilbert Cesbron (1), lembrou-se a edição portuguesa de juntar um sensatíssimo texto de Voillaume, certamente para impedir que os leitores se assustassem demasiado.
Voillaume é uma voz idêntica a algumas que, no contexto, ajuízam, do alto da sua comodidade, sobre o santo heroísmo do padre Pedro. Mas o que nele há de louco, heterodoxo e até de herético, e lhe confere, precisamente, a auréola de santidade, não o podemos varrer da memória, venham quantos Voillaume vierem a deitar água na fervura.
O que deste livro admirável podemos colher é que não basta estar, como o director da fábrica que recebe Pedro, o padre-operário, «certo de cumprir o seu dever». Porque o dever de Pedro, o dever de quem soltou as amarras do porto seguro e, por amor de Cristo, se meteu na tempestade, o dever que a nossa consciência desperta e liberta nos ensina e nos ordena é o Dever Maior, o de uma responsabilidade e exigências maiores.
O dever para Pedro não era o de se «arranjar», porque ele sabia e dizia: «se é preciso arranjar-me, temos que nos arranjar todos». Por isso abalou da sua casa, da sua tranquilidade, da paróquia onde apenas teria missa aos domingos e baptizados de primeira classe... « A linha de maior alegria estava no sofrimento dos outros».
Como o filho pródigo tradicional pôde, porém, regressar à casa e à classe de onde partira, já em cheiro de santidade. Nascera operário e o dever que o chamava nada mais fez do que completar a vocação de padre-operário que no bairro miserável de Sagny abriria caminho à luz e à cruz de Cristo. Mas o filho do meio burguês será o filho pródigo sem regresso, aquele que partiu e nunca mais poderá voltar, aquele que Gide evocou, preludiando uma das mais dramáticas encruzilhadas do nosso tempo, no Retour de l'Enfant Prodigue. Enquanto o padre Pedro regressa, não poderá regressar aquele que renunciou à classe onde nasceu, quando a missão que o chama está na classe em luta aberta com a sua.
É preciso, frente a este livro corajoso de Cesbron, compreender o «drama de classes» vivido por uma juventude onde a fome de heroísmo e a fraternidade é maior do que se pensa, porque a vileza da sociedade a oculta, ridiculariza ou mata.
Saídos de uma família com as exigências espirituais comuns à classe, o ideal destes jovens não fica obrigatoriamente prisioneiro da mediocridade circunjacente. Acossado, repelido, perplexo, surpreendido e incompreendido, o jovem encontrar-se-á naquela terra de ninguém, onde não sabe nem pode escutar ninguém e onde ninguém o escuta. Sobre as fossas de sangue que separam os homens, sobre as muralhas de hostilidade que dividem classes e mundos sociais, tenta lançar a bandeira inquietada da cumplicidade. Quantas vezes, oriundas de todas as pessoas felizes e sensatas que o rodeiam, a pobre vítima não ouvirá intimidações como estas: «Isso há-de passar com a idade». «O menino é louco. Pense antes nos sacrifícios dos seus pais para fazerem de si um homem».
Ao mesmo tempo acodem-lhe as palavras de Corção, que conseguiu ler às escondidas da família: «Contanto que se bata e morra pela única causa que não pode perder sem deixar de ser burguês: o seu critério de vitória, o seu culto do sucesso e do prestígio».
Que nenhum pai queira modelar um filho à imagem e semelhança de si próprio. Que nenhum pai julgue fazer a felicidade de um filho, tutalando-o com um jugo onde se atiçam preconceitos de classe e casta. Não pode haver felicidade na vocação frustrada. E a uma carreira de triunfos, deve o pai certificar-se se o filho não preferirá uma outra, de riscos e perigos, ciladas e alçapões, missão e pobreza voluntária. É preciso dizer aos pais, cegos de amor pelos filhos, que há, que pode haver para eles maior glória do que o triunfo, do que o dinheiro, do que a profissão rendosa, do que um lugar egoísta na sociedade.
É preciso dizer aos pais que o dever nem sempre é conforme em geral uma falsíssima moral do trabalho o prescreve, nem se circunscreve aos sucessos escolares, na profissão e na carreira. É preciso gritar-lhes: - O teu filho não falhou. Pode haver luz (a luz da vocação realizada) nos caixotes do lixo sociais onde julgas que o teu filho desceu. E quem sabe se o renegaste por isso!
De qualquer maneira, se ele abalou, é tarde. O filho pródigo não voltará, porque tem fechado o portão de ferro que nunca cede: a classe. A partir de há muito que o exilado apenas consigo conta. Se procurou ainda a conciliação dos monstros, acabou por ver a desigualdade da luta. No meio, ele é apenas a vítima. Estava a tempo de voltar, podia ter calado dentro de si a voz da vocação, podia ter crucificado Cristo sem lhe dar ouvidos, calado todos os apelos que o desnorteiam e endoidecem. Não lhe faltaram as relações familiares e de amizade, a escola e os livros para o demover. Mas mais forte do que a inércia, do que a sensualidade e o mundanismo, do que a corrupção e a futilidade, foi a chama íntima que nele crepitou. A corrente da verdade partiu a corda podre da mentira. Proibiram-no de ler o Bernanos do Diário de um Pároco de Aldeia, o Coccioli de O Céu e a Terra, o Kazantzaki de O Cristo Recrucificado, o Cesbron de Os Santos Vão para o Inferno, e o Gorki de A Mãe, livros heróicos, livros de redenção, livros de libertação; mas esses poucos conseguiram vencer toda a literatura burguesa de abdicação, conformismo e mudez.
Cristo entrou a jorros pela sua janela de menino-família. E ele será, como Bernanos, como Coccioli, como Kazantzaki, como Cesbron, como o Padre Américo, como o Padre Joaquim, um dos acusadores da sociedade que escorraçou Cristo e diariamente o recrucifica.
O apelo de Cristo será mais forte do que as algemas do hábito, dos interesses de classe, do que a rotina, do que a inércia. Cristo vivo acordou nele, Cristo será mais forte do que os afectos de família. É preciso repetir ao pai:
- O teu filho não traiu. Quiseste-lo tranquilo e feliz e rico, mas ele abalou, ao vento e ao frio, a beijar na boca a adversidade, a pobreza, talvez a ignomínia. Cumpriu. Cumpriu o Dever.
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(1) Os Santos Vão para o Inferno, de Gilbert Cesbron, tradução portuguesa de Xavier Coutinho, Porto, 1958 (3.ª edição).
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GILBERT CESBRON
«Nasceu em Paris a 13 de Janeiro de 1913.
Frequentou o Liceu Condorcet, depois a Escola das Ciências Políticas na mesma cidade. Na guerra de 1939 foi mobilizado como oficial de artilharia.
Tem já uma longa carreira literária: LES INNOCENTS DE PARIS, obra que obtém em 1944 um grande prémio e está traduzida em nove línguas; em 1946, ON CROIT REVER; em 1947, LA TRADITION FONTQUERNIE que recebe no mesmo ano o «Prémio dos Leitores»; em 1948, NOTRE PRISON EST UN ROYAUME que é galardoada com o «Prémio Sainte Beuve».
Na mesma altura, representa-se em Paris a sua primeira peça de teatro BRISER LA STATUE. Em 1950, uma segunda peça de grande êxito IL EST MINUIT, DOCTEUR SCHWEITZER da qual extraíram um filme. Também em 1950 publica o romance LA SOUVERAINE e em 1951 o livro de contos TRADUIT DU VENT. O romance LES SAINTS VONT EN ENFER, publicado em 1952, tornou o seu nome conhecido em todo o Mundo.
O ano de 1953 vê aparecer um novo livro deste notável escritor. Gilbert Cesbron é casado e pai de quatro filhos.»
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