GERSHOM SCHOLEM: O FIO DA MEADA
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TESOURO RESTITUÍDO
O FIO DA MEADA
[ Março de 1990] - Se a boa consciência das religiões(que se degradaram ao contemporizarem com o poder político e económico) é reencontrada na sua parte maldita, oculta ou esotérica, como demonstra até à exaustão o magnífico livro de Gershom Scholem sobre "A Cabala e a Mística Judaica" (Publicações Dom Quixote), não se compreende que alguns críticos e analistas, feitos directa ou indirectamente e com o poder político e económico, continuem no piedoso propósito (já nem sequer em nome do positivismo) de continuar caluniando as "ciências ocultas" ou "esotéricas” como a Astrologia, quando mais nada têm para dar em troca além do cancro tecnológico e da sida científica, como é o caso do livro, editado pela Presença, sobre "A Linguagem da Astrologia", assinado por um tal senhor Ugo Volli.
Se escolhemos estas duas obras para a página de hoje, não foi, portanto, pelas suas afinidades electivas, mas exactamente por se situarem em posições antipolares, diametralmente opostas nos objectivos e no espírito com que foram elaboradas - mas, ao fim e ao cabo, por força da mesma circunstância: a evidente e irresistível atracção que o Fio esotérico de todos os tempos (a Tradição Primordial Viva) continua a exercer numa cultura exoterizada (com x) até ao delírio patológico da alienação e da autodestruição.
Quando faleceu, em 1982, Geashom Scholem era ainda professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, o que lhe dava portanto responsabilidades na manutenção do sistema. Mas a sua análise intensiva do "espiritualismo judaico", desde o Talmude à Cabala, desde o "Livro do Génesis" ao "Livro do Esplendor" (Zohar), passando pelas ''Lamentações'' de Jeremias, pelos "Cânticos" de Salomão ou pelo "Cântico dos Cânticos", de modo nenhum se ressente dessa circunstância particular, pelo que temos, neste livro-chave , não só a obra de um erudito que dedicou sessenta anos da sua vida ao estudo da matéria, mas um apaixonante depoimento, quase manifesto, sobre o lado oculto de uma religião que o lado revelado francamente tornou pouco simpática à opinião pública mundial.
Sem se comprometer com o Establishment, Gershom Scholem acaba por prestar o serviço que se esperava dele: o readquirir a tal "boa consciência” que uma religião perde, quando perde a virgindade e se entrega nos braços do poder económico e político para os fins que se podem supor.
A mística judaica, que levaria à construção da Cabala, um dos edifícios mentais (e nem só) mais enigmáticos e mais fascinantes que o homem soube construir, fica assim relativamente acessível àquele público que, embora sensível ao apelo do esotérico, acaba por ser arrastado pela forte corrente do marketing e dos «media», deixando-se totalmente submergir pelo dilúvio de filmes pró-sionistas que a televisão e o cinema lhe dão em quantidades industriais e verdadeiramente bombásticas.
Aliás, houve já quem dissesse que o dilúvio bíblico é exactamente essa quantidade de filmes, histórias e historietas que, através da TV ou do cinema, com óscares ou sem óscares, conseguem insinuar sempre a mensagem pró-sionista que convém, nem que seja subliminarmente. Ou nem que, para isso, tenham de ressuscitar cem vezes ao mês o odioso e sinistro nome e perfil de Hitler.
Gershom Scholem, na obra “A Cabala e a Mística Judaica", coloca nas nossas mãos um dos ramos mais preciosos da Tradição Primordial viva (a que foi ensinada directamente pelos deuses, em transmissão directa e não diferida ) que teve maneira de se manter incólume, através das mais variadas vicissitudes temporais que ameaçaram a sua integridade e pureza. Sabemos agora como puxar o fio da meada.
Conhecido assim através da sua mística, o judaísmo torna-se (imagine-se!) comestível, uma ideologia humana e humanista. Talvez por isso tivesse permanecido oculta... O que nos remete automaticamente para um problema histórico e filosófico que está no centro da podre cultura contemporânea: como reconquistar sem degradar o tesouro precioso que se guarda nos arcanos da ciência esotérica( com s) de forma a contrabalançar o terror de uma ciência exotérica (com x) que, no nosso tempo, conseguiu levar a humanidade às vascas da agonia, ao limites extremos da Abjecção, da Ignomínia e do Aviltamento.
Fios de ouro como este que Gershom Scholem reata são um bom princípio para retomar o fio à meada. Assim se consiga perceber, na algazarra do marketing e dos "contadores de histórias;" da Carochinha, o que é e o que não é fundamental, o que é o que não é importante, o que perdura e permanece para lá do que muda (as modas que accionam o Lucro), para lá do que permanentemente morre.
Vivamente se recomenda este livro da Dom Quixote, numa colecção, aliás, que é toda ela, com as obras já publicadas de Julius Evola, René Guénon e Frithjof Schuon, um tesouro à disposição de todas as bolsas. " Tradição - Biblioteca de Esoterismo e Estudos Tradicionais" se intitula esta colecção, com que a Dom Quixote vai buscar lenha para se queimar, mas isso é lá com ela e já é outra história...
A título exemplificativo, devemos citar o capítulo em que o autor aborda o "Bem e mal na Cabala".
Se o leitor ainda tiver dúvidas sobre o inegável interesse deste livro e quiser ser "agarrado" (como num romance da Patrícia Highsmith...) é começar por aí, onde Scholem atribui o dualismo filosófico (fonte de todos os males) entre Bem e Mal, não tanto à religião mazdeista e a Zoroastro (que têm tido as costas largas) mas pura e simplesmente a platónicos, neoplatónicos e sequelas aristotélicas.
"O bem e o mal - escreve Scholem - não existem da mesma maneira -- como a matéria e as trevas -- é apenas uma noção de um não-presente, de um ausente. Foi a tirania desta ideia poderosa que dominou durante séculos o pensamento árabe e europeu. O mal é o Nulo, é o que está na fronteira do Ser, na ponta mais extrema da cadeia das emanações, para falar neoplatonicamente; e à natureza luminosa corresponde a natureza tenebrosa e sem luz do mal, que não tem propriamente existência e só condensada e metaforicamente se deixa representar no discurso mítico como algo que é."
Com esta citação, espero ter aguçado o apetite dos mais renitentes e ter dado uma amostra de que, mais do que um erudito e um livro académico, " A Cabala e a Mística Judaica" pode funcionar como um autêntico "brain storming" no nosso acanhadinho e escanhoadinho meio cultural.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, obviamente 5 estrelas, não deve ter sido, por isso mesmo, publicado: ou se foi, não sei em que data dos anos 80. Adoptei a data de tipografia do livro: Março de 1990■
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